Ramalho Ortigão, mais um ano... e por Eça, o Panteão pode esperar
adelino cpires, 27.09.23
Falta-nos hoje quem escreva como eles, farpeando aqui e ali, com muito peso e medida, do alto da ramalhal figura? Talvez haja, talvez, mas não será a mesma coisa. Agora que os tempos são outros e porque mudam se mudam as vontades, aqui fica um testemunho, escrito há tempos. Hoje, que passa mais um ano sobre a morte de Ramalho e em que Eça era para ir mas não foi. O Panteão pode esperar.

Paletó e suspensórios…*
Falam-me em escrever numa Revista. Será assim uma coisa a sério, para leitura com outra profundidade. Logo eu que não faço mergulho, não uso escafandro e o fôlego até já não é muito. Dizem-me que esteja à vontade, que mergulhe onde me apeteça, águas frias ou águas mornas, bandeira verde a desfraldar. Penso bem e lá me decido. Para a profundidade esperada, dispenso os calções de banho, inspiro-me nos velhos mestres, brilhantina, bem aprumado, paletó e suspensórios, que o momento não é para menos. Vamos lá, vamos a isso…
… E Carlos da Maia respondia então ao avô: “… Mil coisas! Temos o projecto duma Revista, um aparelho de educação superior, que vamos montar com uma força de mil cavalos!...”. João da Ega olhava o velho Afonso e sorria. Sabia que uma coisa é o querer, outra, o poder. E lembrava-se que já Herculano tentara no ‘Repositório Litterário’ e no ‘Panorama ‘,” introduzir em todas as classes o amor da instrução, até aos últimos degraus da escala social”. Ou até mesmo Camilo, mais preocupado com os amores e desamores com que mergulhava a sua pena, se perdera pelas páginas de revistas, por entre os milhares de tantas outras com que alfinetava aqui, enovelava ali, enquanto se prendia às grades da Cadeia da Relação e de todas as ralações da sua vida. Que mesmo Pessoa, esse indisciplinador de almas, esse fingidor angustiado que fingia ser ele e os outros, se ia embrulhando em papel de revista, reinventando-se, recompondo-se, mascarando-se nalgumas das mais importantes e improváveis publicações da época. Na ‘Athena’, na ‘Contemporânea’, na ‘Portugal Futurista’ ou na ‘Orpheu’, duro e corrosivo, para uma crítica anquilosada e adormecida. Ou que Pascoaes voara com a Águia nas tempestades de Marânus, como Aquilino debulhara numa Seara, nova nos espíritos e nos anseios, ou que Régio marcara Presença na penumbra de então, com um pé em Deus, outro no Diabo.
Ah, não fossem estes oásis literários e outras chronicas da política, das letras e dos costumes e onde encontraríamos Ramalho farpeando para a posteridade, Fialho com os seus gatos de garras afiadas, ou uma Vértice de geometria neo-realista, assumindo polémicas, desbravando caminhos, agitando consciências?
Nas revistas se pariram os primeiros filhos, os primeiros textos envergonhados, os primeiros poemas imperfeitos, os primeiros desenhos inacabados. Por isso, muitas delas morreram no parto. Mas antes do suspiro final falaram-nos de arte com todas as letras. E da letra de todas as artes.
Por isso, fazer uma revista é ousar vencer e, por vezes, ousar perder. Mas sempre e sempre, ousar lutar. Também por isso, ajeito o paletó, componho os suspensórios e regresso a Eça e àquela fraca, mas enorme figura, seca de carnes, mas cheia de espírito, atormentada de medos e afantasmada pela vida. E pego numa Revista. Porque só ali se poderia publicar pela primeira vez aquela “… intriga de clérigos e de beatas, tramada à porta de uma velha Sé de província portuguesa…” E porque, por aquele monóculo já se avistava o talento, como diria Torga, “… arrancar desta terra um tal romance, parece uma obra de Deus…”.
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adelino cp
(texto escrito há tempos na Revista PONTO)