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clausuras

porque também a escrita deve ficar sempre na penumbra, sem que a claridade ofusque as margens...

clausuras

porque também a escrita deve ficar sempre na penumbra, sem que a claridade ofusque as margens...

Do terramoto

adelino cpires, 01.11.23
1 de Novembro de 1755. Fosse por pressentimento, fosse pelo destino, Gabriel Malagrida rezara missa mais cedo do que era costume. Passou à capela, fechou-se no confessionário e ali ouviu os últimos desabafos de muitos dos fiéis.
Eu pecador me confesso, diziam, prontos a pecar de novo. Depois, um abalo aqui, um abanão acolá, e assim se foram as paredes da igreja e da capela e, com elas, todas aquelas centenas de pecadores que ali enviaram a alma ao criador.

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Como que por milagre, salvou-se Malagrida, o jesuíta, atónito ao que assistia. A força da natureza, cruel e impiedosa, reduzia o homem à sua insignificância. A destruição era total. O Paço Real, os seis hospitais da cidade, dezenas de palácios da grande nobreza, igrejas e bibliotecas, o velho casario, animais atarantados, toda aquela gente, tudo literalmente engolido pelo desabar do mundo. Do ar, do fogo e do mar. Qual tragédia grega, os deuses deveriam estar loucos.
Ausente de Lisboa, por sorte ou por milagre, a família real escapara. E, ainda, Sebastião José de Carvalho e Melo, secretário do reino e futuro Marquês de Pombal. Para Malagrida, o jesuíta, era a justiça divina no seu esplendor. Ali estava a punição dos erros do povo e de quem o governava. Sebastião José, esse, não lhe perdoaria. E uns anos depois, sem dó que se ouvisse, nem piedade que lhe valesse, o velho jesuíta encontrou no cadafalso, o garrote e a fogueira com que pagou com a vida a sua demasiada ousadia.
 
Deixemos o malogrado Malagrida e voltemos a Sebastião José. A diplomacia em Londres e Viena deram-lhe mundo. D. José, o Rei, deu-lhe poder. À data da catástrofe era já o homem forte do reino. E, enquanto o Rei, angustiado, não mais recuperava do susto, passando a viver em tendas e barracas gigantes montadas na Ajuda receando que o céu lhe caísse em cima, Sebastião José, homem de vistas largas, de pés na terra, pulso firme e nervos de aço, sabia não ter tempo a perder. Das gentes, cuidou dos vivos, enterrando os mortos. Da cidade, gizou com os seus mestres uma reconstrução visionária, a pedir meças ao inimaginável.
Naquela tragédia, milhares perderam a vida, uns perderam os outros e muitos o pouco que tinham. Sobre ela escreveram Voltaire, Kant, Goethe e Rousseau. E sobre os seus escombros ergueu-se aquela que é uma das mais belas cidades do mundo, hoje já sem Malagridas no confessionário mas com pecados ainda por expiar.
 
adelino cp
1.Nov. (de todos os anos)

Maria Lamas, 130 anos (um tributo)

adelino cpires, 06.10.23
As mulheres do meu país *

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Maria Lamas. De lés a lés, palmilhando serras e serranias, leiras e baldios, olhando, escutando, por vezes emudecendo, quase sempre encorajando, aquela mulher teria que o conseguir. Tarefa árdua em pleno Estado Novo, naquela já longínqua década de quarenta, sacudindo ainda as cinzas de um pós-guerra atordoado, agora as armas seriam outras. A palavra, a imagem e a escrita para memória futura, seriam bem mais que um desafio, antes uma missão que assumia há muito e chegava agora ao prelo.
“As Mulheres do Meu País” livro único e irrepetível, só poderia ter sido escrito por ela. Um testemunho intemporal. Devia-o à sua consciência, mas sobretudo a tantas mulheres anónimas, com rosto e sem posto.
 
À mulher mãe. Porque onde há mulheres há canalha, a miudagem das gentes do norte. Que tantas vezes crescia como se cria o gado, se guardam ovelhas, cabras ou segredos. Com amores, desamores, rezas e ladainhas. Bailaricos e mau olhados.
 
À mulher trabalho. À camponesa “que conduz firmemente os bois ou que segura sem desfalecimento a rabiça do arado”. À castreja que, vestida de burel que ela própria fiava e tecia, qual monja sem mosteiro, vai parindo de quando em vez, enquanto o homem ali vai e vem até à estranja. Ou à outra que cava, que vindima, que ceifa, com um filho no ombro e outro no ventre. Ou ainda àquela que, de água pelos joelhos na margem da ribeira, vai lavando a roupa e com ela as mágoas, como se as nódoas da sua triste sina assim fossem por água abaixo. E, também, à mulher brio. Dos brios e das vaidades, porque não? Das suas tradições e contradições, “da predilecção pelo oiro e do respeito pelo luto”.
 
E, por fim, à mulher luta. Das omissões e dos esconderijos. De histórias do contrabando ou do contra gosto. Da viuvez mascarada e da prostituição simulada. Das violências e violações nunca assumidas. Guardadas a sete chaves, com fugas a sete pés. Um livro assim, nunca poderia ser apenas um livro. São páginas de sonos e de sonhos, por entre espigueiros e teares. De linho ripado e enxoval preparado. Um hino à mulher portuguesa. Onde tanto país cabe numa mulher. E onde tanta mulher sabe deste país.
 
adelino cp
* nos 130 anos do nascimento de Maria Lamas
(texto recuperado)
 
 

República, mas pouco...

adelino cpires, 05.10.23
Sim, poderia ser a imagem de um velho grupo de músicos da Filarmónica da aldeia. Chapéus, bigodes, fardas e alguns instrumentos.

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Olhando melhor, percebe-se que afinal as fardas eram outras, que aquelas trombetas podiam disparar, ou que entre os chapéus havia os de pala e os de aba redonda. Apenas os bigodes pareciam iguais. Os olhares, esses, entre o determinado e o assustadiço, não enganavam. Não, não se tratava de dar música no salão da aldeia, nem tão pouco de qualquer romaria à nossa senhora das dores. A coisa seria mais séria. Ou antes. A coisa foi rotundamente séria. E naquele dia, entre cara ou coroa, perderia a coroa para sempre.
 
Numa época em que tudo é tão efémero, em que as notícias se sucedem em catadupa e em que as não-notícias se vão sobrepondo, muita gente apenas saberá que hoje é feriado. Porquê? Isso agora ‘não interessa nada’.
O mais importante é que é mais um feriado, sabe-se lá a razão. Se o Rei ou a Rainha tiveram que fugir à pressa ali dos lados da Ericeira algures para outras bandas, ou se o Teófilo, o Afonso, o António José, o Bernardino e alguns mais formaram provisoriamente um Governo, isso é coisa que pouco importa. São histórias doutro rosário, que agora a história vai sendo outra outra.
 
Passa hoje mais um ano sobre a Implantação da República.
 
adelino cp
5.outubro.2023

Ramalho Ortigão, mais um ano... e por Eça, o Panteão pode esperar

adelino cpires, 27.09.23

Falta-nos hoje quem escreva como eles, farpeando aqui e ali, com muito peso e medida, do alto da ramalhal figura? Talvez haja, talvez, mas não será a mesma coisa. Agora que os tempos são outros e porque mudam se mudam as vontades, aqui fica um testemunho, escrito há tempos. Hoje, que passa mais um ano sobre a morte de Ramalho e em que Eça era para ir mas não foi. O Panteão pode esperar.

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Paletó e suspensórios…*
 
Falam-me em escrever numa Revista. Será assim uma coisa a sério, para leitura com outra profundidade. Logo eu que não faço mergulho, não uso escafandro e o fôlego até já não é muito. Dizem-me que esteja à vontade, que mergulhe onde me apeteça, águas frias ou águas mornas, bandeira verde a desfraldar. Penso bem e lá me decido. Para a profundidade esperada, dispenso os calções de banho, inspiro-me nos velhos mestres, brilhantina, bem aprumado, paletó e suspensórios, que o momento não é para menos. Vamos lá, vamos a isso…
 
… E Carlos da Maia respondia então ao avô: “… Mil coisas! Temos o projecto duma Revista, um aparelho de educação superior, que vamos montar com uma força de mil cavalos!...”. João da Ega olhava o velho Afonso e sorria. Sabia que uma coisa é o querer, outra, o poder. E lembrava-se que já Herculano tentara no ‘Repositório Litterário’ e no ‘Panorama ‘,” introduzir em todas as classes o amor da instrução, até aos últimos degraus da escala social”. Ou até mesmo Camilo, mais preocupado com os amores e desamores com que mergulhava a sua pena, se perdera pelas páginas de revistas, por entre os milhares de tantas outras com que alfinetava aqui, enovelava ali, enquanto se prendia às grades da Cadeia da Relação e de todas as ralações da sua vida. Que mesmo Pessoa, esse indisciplinador de almas, esse fingidor angustiado que fingia ser ele e os outros, se ia embrulhando em papel de revista, reinventando-se, recompondo-se, mascarando-se nalgumas das mais importantes e improváveis publicações da época. Na ‘Athena’, na ‘Contemporânea’, na ‘Portugal Futurista’ ou na ‘Orpheu’, duro e corrosivo, para uma crítica anquilosada e adormecida. Ou que Pascoaes voara com a Águia nas tempestades de Marânus, como Aquilino debulhara numa Seara, nova nos espíritos e nos anseios, ou que Régio marcara Presença na penumbra de então, com um pé em Deus, outro no Diabo.
 
Ah, não fossem estes oásis literários e outras chronicas da política, das letras e dos costumes e onde encontraríamos Ramalho farpeando para a posteridade, Fialho com os seus gatos de garras afiadas, ou uma Vértice de geometria neo-realista, assumindo polémicas, desbravando caminhos, agitando consciências?
Nas revistas se pariram os primeiros filhos, os primeiros textos envergonhados, os primeiros poemas imperfeitos, os primeiros desenhos inacabados. Por isso, muitas delas morreram no parto. Mas antes do suspiro final falaram-nos de arte com todas as letras. E da letra de todas as artes.
 
Por isso, fazer uma revista é ousar vencer e, por vezes, ousar perder. Mas sempre e sempre, ousar lutar. Também por isso, ajeito o paletó, componho os suspensórios e regresso a Eça e àquela fraca, mas enorme figura, seca de carnes, mas cheia de espírito, atormentada de medos e afantasmada pela vida. E pego numa Revista. Porque só ali se poderia publicar pela primeira vez aquela “… intriga de clérigos e de beatas, tramada à porta de uma velha Sé de província portuguesa…” E porque, por aquele monóculo já se avistava o talento, como diria Torga, “… arrancar desta terra um tal romance, parece uma obra de Deus…”.
_________
adelino cp
(texto escrito há tempos na Revista PONTO)

Já lá vão uns anos...

adelino cpires, 17.09.23
Já lá vão uns anos. Pela manhã, um café. Ao fundo, a maré ainda vazia, a areia ainda dourada, o vento por acordar. Isabel, pegou nos bilros e sentou-se na mesa do lado. Mãos desenvoltas, percebi-lhe o sotaque. Perguntei-lhe as origens. Vila do Conde, disse ela. Terra de Régio, comentei eu. Meu tio-avô, irmão da minha avó Ana Baptista, disparou Isabel. Que percebeu que eu tinha cabeça e queria que fosse estudar e mais isto, aquilo e sei lá o quê. E enquanto Isabel falava e rendava e desfiava todas aquelas memórias, a Dora, a meu lado, deixava arrefecer o café, deliciada com mais uma história, imprevista, inesperada, daquelas que não vêm nos livros. E no fim, o desabafo: porque será que mesmo de férias os poetas te perseguem?...

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Não sei se Isabel continua com as mãos desenvoltas de volta com os bilros. Mas sei, isso sim, que o seu tio-avô, o poeta irmão de sua avó, nasceu num tal 17 de Setembro lá longe em Vila do Conde. E viveu perto de mim,
 
"... Em Portalegre, cidade
do Alto Alentejo, cercada
de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
morei numa casa velha,
velha grande tosca e bela
à qual quis como se fora
feita para eu morar nela...",
(da Toada de Portalegre)
 
(passa hoje mais um ano sobre o nascimento de José Régio)
 
adelino cp
17.set.23
 
 
 
 
 
 

A morte e também o resto... (que a estátua sobreviva)

adelino cpires, 15.09.23

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Não fora o Diabo e seria suposto estar a festejar-te. Não sei se por Seide se na Samardã, ou mesmo na ralação da Cadeia, mais perdição que Relação por entre pilantras, sinetas ou ferrolhos. Deixaria até que ajeitasses o monóculo cofiando o bigode, posando para a foto da praxe de sorriso maroto e caneta afiada.
Não fora o Diabo, entretinha-me pelo Minho das tuas novelas, perdia-me nas noites das tuas insónias, escondia-me nas trevas das tuas angústias. Talvez tomasse a liteira por algumas horas, balouçando nos fraguedos daquele Marão, bisbilhotando amores que por lá descobriste. Da Teresa, da freira, de tantas. Não fora o Diabo e talvez mergulhasse na utopia com que embrulhavas casórios, uma dúzia, logo doze, de todos os gostos. E felizes. Assim o escrevias. Não fora o Diabo e esperaria por ti. Seria bom ouvir-te. Mesmo que a rabujares por falta de amores. Mesmo que a divagares, cultivando o talento. Mesmo que prosando até à penumbra.
Mas veio o Diabo, Camilo. E agora não posso. Ficará para o dia em que a tempestade passar. O tempo é agora de duros marinheiros, mãos calejadas e olhos vidrados nas ondas revoltas. O tempo é um sopro. E o vento agora não sopra a favor. Desculpa Camilo se não te festejo como devia e tu merecias. Mas há a morte ali à espreita e também o resto. Há gente a lutar pela vida de tantos e também o resto. Há um tempo para tudo e também o resto... Sabes Camilo, não fora o Diabo e esperaria por ti. Até que o teu anjo voltasse a cair.
 
(escrito há tempos, em 16/3/2020 e hoje recuperado; naturalmente...)
 
adelino cp
15.9.23
 
 
 
 

A Confraria do Tremoço

adelino cpires, 06.09.23
Nos tempos que correm, este modelo de Conselho de Estado parece-se assim com a Confraria do Tremoço onde nem falta o pratinho para deitar as cascas. Vai quem pode ou talvez sim, falta quem quer ou talvez não, uns falam outros cochicham, um afina outro amua, e no fim saem com cara de dever comprido. Comprido que não cumprido. Alguns, pelas horas roubadas à sesta habitual. Outros, pelas horas tiradas às tarefas bem cobradas. É uma confraria sem jeito e com os dias contados. É vê-los com cara de enfado, sorriso amarelo, num fazer de conta às contas que não se fazem. Não deviam passar por isto. Alguns, pelo que foram e já não são. Outros, pelo que não foram e nunca serão. Restam os dois do costume. O senhor e o vassalo. Mas o vassalo é tramado e não passa cartão ao senhor. E o senhor é teimoso e não passa sem vassalagem. Um fala que se desunha. O outro entra mudo e sai calado. E se poupassem nos tremoços e acabasse a confraria? Nem sabem o bem que faria...
 

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adelino cp
6.set.23
 

António Sérgio, 140 anos depois...

adelino cpires, 03.09.23
Recordo-me de, há tempos, ficar a saber que António Sérgio terá tido ligações aqui, ao concelho de Torres Novas, onde se refugiava de quando em vez, no Solar de Vargos, por razões familiares. Ficou a ponta da meada, conversei sobre isso, e confesso que, na altura, com o aproximar do centenário da Seara Nova (em 2021) ainda pensei em aprofundar a questão, tendo sugerido que no Município, se fizesse algo que assinalasse a data, com a dignidade que o momento merecia. O tempo passou e outros valores mais altos se terão levantado. Foi pena.
 
Felizmente que muitos têm sido os eventos para, justamente, assinalar isto ou aquilo. Que muitas têm sido as conferências, cursos, colóquios, apresentações, inaugurações, exposições, enfim, toda uma panóplia de eventos para todos os gostos. Mas, azar dos Távoras, só não houve lugar, nem tempo, nem quorum nem lá o que fosse para assinalar aquele centenário. Restou-me fazê-lo, num texto que publiquei nesse dia e que aqui reproduzo:
 
"... Há 100 anos, precisamente no dia 15 de Outubro de 1921, publicava-se o 1º número da Revista Seara Nova. Nascida de uma reunião na Biblioteca Nacional promovida no ano anterior com o intuito de elaborar um programa de acção política e social, integravam o seu corpo directivo, Aquilino Ribeiro, Augusto Casimiro, Faria de Vasconcelos, Jaime Cortesão, José de Azeredo Perdigão, Câmara Reys, Raúl Brandão e Raúl Proença. Dizia então esta plêiade de luxo, pretender “Renovar a mentalidade da elite portuguesa, tornando-a capaz dum verdadeiro movimento de salvação; Criar uma opinião pública nacional que exija e apoie as reformas necessárias; Defender os interesses supremos da nação, opondo-se ao espírito de rapina das oligarquias dominantes e ao egoísmo dos grupos, classes e partidos; Protestar contra todos os movimentos revolucionários, e todavia defender e definir a grande causa da verdadeira Revolução; Contribuir para formar, acima das Patrias, a união de todas as Patrias – uma consciência internacional bastante forte para não permitir lutas fraticidas”.
 
Contextualizando a época, vivia-se em plena 1ª República, saídos de uma I Grande Guerra com os estilhaços daí advindos. Tempos conturbados, acentuadas desigualdades sociais, analfabetismo e iliteracia. Para os seareiros, “...nenhum regime
político de mentira e incompetência se pode manter sem que essa incompetência e mentira sejam as características dominantes da sua própria elite intelectual... Em democracia quem mente ao povo é réu de alta traição...”
 
A Seara Nova manifestava então o seu desconforto com alguma degradação republicana. António Sérgio que viria a juntar-se ao corpo directivo em 23, fruto do seu “...espírito mais lúcido, mais penetrante e mais sólido da moderna geração...”, foi com Raul Proença e até à campanha de Humberto Delgado uma das figuras proeminentes na estrutura de pensamento do grupo. O espírito seareiro foi, durante o Estado Novo, a base de uma consciência cívica na qual muitos beberam a sua formação. Sofreu as agruras da época. Logo em Julho de 1926, no seu número 94 o dístico “Visado pela Comissão de Censura” anunciava tempos difíceis. Interrompida a sua publicação em Agosto de 1926, veio a ser retomada 8 meses depois, em Abril de 27 com uma boa parte da sua direcção no exílio, António Sérgio, Raul Proença, Jaime Cortesão e Sarmento Pimentel.
 
Ao longo de várias décadas, a história da Seara Nova é também a história das figuras que a integraram, das polémicas que alimentou, dos conturbados períodos que atravessou. Da fundação aos anos 40, onde António Sérgio e Raul Proença emergiram, ressalta a preocupação da denúncia das correntes ideológicas de extrema-direita de então (Integralismo Lusitano e Cruzada Nun’Álvares). Com a saída de Sérgio em 39 e até à campanha de Delgado em 58, mantém uma participação autónoma no MUD e noutros movimentos cívicos, onde Câmara Reys assume um protagonismo de relevo, assumindo-se a partir da década de 60, como revista de resistência antifascista, com reposicionamentos vários após Abril de 74.
 
Um século é muito tempo. Pelas páginas da Seara Nova passaram dezenas de nomes incontornáveis do pensamento e da cultura. Adolfo Casais Monteiro, Agostinho da Silva, Antero de Quental, Manuel Teixeira-Gomes, Alves Redol, Afonso Duarte, José Régio, João Falco (Irene Lisboa), Vitorino Nemésio, José Gomes Ferreira, José Rodrigues Miguéis, Fernando Namora, Carlos de Oliveira, Vergílio Ferreira, entre tantos outros. Por ali foram esgrimidas algumas das mais acesas polémicas de então. Entre Raul Proença, Ferreira Monteiro e Agostinho da Silva, ou entre Régio e Álvaro Cunhal a propósito das “cartas Intemporais” de Régio. Falar da Seara Nova seria falar também dos períodos que politicamente a marcaram, das amizades desavindas, da invulgar longevidade, do seu papel doutrinário, do que tanto tantos lhe devem. Falar da Seara Nova não cabe numa crónica de jornal. Também por isso voltarei à seara. A quem devo parte do que sei e do que sou. Às capas de Leal da Câmara. Aos caderninhos dos anos 30. Aos contos de Aquilino Ribeiro. Às cartas de Jaime Cortesão. Às polémicas. A tanto.", adelino cp, 15.Outubro.2022

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E se agora volto ao tema, é porque passam 140 anos sobre o nascimento de António Sérgio. O tal Sérgio do refúgio de Vargos, autor das Cartas do Terceiro Homem, pilar de uma seara, já velha, mas sempre nova, rasgando com velhos hábitos, a propósito da Cultura (ou falta dela) e o Isolamento dos Povos Peninsulares. António Sérgio, dos "Ensaios", quais livros de cabeceira. Que pensava e fazia pensar. E que terá sido certamente um dos pensadores de raiz profunda, indo ao âmago, não apenas à flor da pele. Que influenciou muitos, sem que à época se tivessem apercebido. Que norteou outros, cuja bússola se perdera por entre os socalcos da vida. E que ombreou com alguns que, como ele, semearam para que outros colhessem. Sempre assim foi nas searas. Nas velhas, nas novas e em todas.
 
adelino cp / 3.9.23
Imagem: António Sérgio, caricatura de António
(do blogue pés d'foca)

O tempo é que amadurece as peras. Ou as maçãs...

adelino cpires, 26.08.23
Estou retirado das lides da bola há muito tempo. Passei o testemunho aos meus filhos e netos, algo que vem da geração do nosso avô Correia, foi continuando, e espero que continue até que o nosso Sporting dure. Para sempre. Vem isto a propósito do João Moutinho, o tal exemplo de bom comportamento, profissionalismo, dedicação à causa, enfim, esforço, dedicação, devoção e glória.
 
Nunca o vil metal para ele parecia contar, sempre concentrado, concentradíssimo no jogo (e no seu futuro). Era assim o exemplo do jogador à antiga, de quem corre por gosto não cansa. Ao contrário de outros que nunca esconderam as suas aspirações, ambições e outras coisas acabadas em ões, como milhões, o João, parecia preferir a estabilidade. A sua, naturalmente. Bem formado, mesmo voltando as costas a quem o formou, foi então para um clube adversário, esse sim que entendeu que o merecia. O verde já não. Azul seria o caminho. Era a cor do paraíso. Agora, qual maçã de Adão, terá cometido o pecado.
 

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Mas não é o mesmo João de outrora, o tal certinho, direitinho, concentrado no jogo, jogador à antiga? O paraíso, esse, estará algures numa biblioteca, como diria o Borges, que já cego, via mais que os outros de olhos abertos. E o tempo é sempre quem amadurece as peras. Ou as maçãs...
 
adelino cp
26.8.23

O'Neill, mais um ano

adelino cpires, 21.08.23

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Ah, se o O'Neill cá viesse,
e soubesse, o que parece,
que se passa.
Ah, se o O'Neill cá voltasse,
e soltasse
um riso, um sorriso,
uma baforada, com piada.
Inteligente. De gente, como só ele,
sempre, quase sempre,
o conseguia.
 
Se o O'Neill aqui viesse,
com aquele seu ar
desajeitado e natural;
Estou certo que voltaria
a escrever o que escrevia,
ainda e sempre sobre a
história da moral...
 
" Você tem-me cavalgado,
seu safado!
Você tem-me cavalgado,
mas nem por isso me pôs
a pensar como você.
Que uma coisa pensa o cavalo;
outra quem está a montá-lo."
 
(passa hoje neste funil
mais um ano sobre
a morte de
Alexandre
O'Neill)
______________
adelino cp
21 agosto
(de todos os anos)

A faiança não fala

adelino cpires, 17.08.23
Muitas das peças de faiança portuguesa, algumas delas artesanais, produzidas em pequenas oficinas ou olarias, não eram marcadas, nem apresentavam qualquer marca de fábrica ou do oleiro que as produzia, ao contrário do que acontecia com a produção industrial das fábricas de outra louça ou porcelana, casos de Sacavém ou Vista Alegre.
 
O termo "a faiança não fala" era assim usado para responder à pergunta "de onde é esta peça? tem a certeza de onde é?". Como não estava marcada, a resposta irónica e para princípio de conversa seria então: "A faiança não fala", precisamente porque não estava marcada.

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Desde as primeiras publicações de José Queiroz e Arthur de Sandão, passando pelos catálogos dos leilões das colecções de Maldonado Freitas, António Capucho, Ernesto Vilhena ou Hipólito Raposo só para falar de alguns quantos, muito se avançou e evoluiu na sua identificação. Desde logo e como exemplo, com a publicação de vários trabalhos académicos como os de Jorge Pereira de Sampaio sobre Juncal, entre outros, com alguns catálogos de coleccionadores particulares como António Vinagre sobre a Faiança de Viana e, sobretudo com alguns estudos mais aprofundados que nos últimos anos, fruto da informação disponível e partilhada, tem sido possível realizar.
 
Apesar de tudo, há sempre dúvidas. O prato que apresento, adquirido há vários anos precisamente numa das maiores colecções de faiança conhecidas de então, apresenta uma convicção e uma dúvida: a convicção de que é Viana, II Período (1790 a 1830) - marca (V.); a dúvida, referente à sua inscrição (MADORA,) que poderá ser (ou não) o acrónimo de Madre Superiora.

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Há alguns anos tentei junto do Museu de Artes Decorativas de Viana do Castelo a melhor identificação deste prato sem que o conseguisse. Por estas e por outras, continuo a dizer que, por vezes, a faiança não fala...
 
adelino cp
17.8.23

Eça, mais um ano...

adelino cpires, 16.08.23
Mantenho-me em pousio das escritas de fundo. Enquanto o mar bate na rocha, continuo no lugar do costume. Os mais distraídos tropeçam de quando em vez por aqui. Dois dedos de conversa, meia dúzia de livros e, revistas as velhas páginas de interesses vários, lá se vão, que há mais vida para além dos livros. E eu por cá me fico pregando na mesma freguesia, que é como quem diz, no centro de um burgo que podia ser mas não é.
 

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Quem era mesmo era o Eça, que faz hoje mais um ano que se foi. Viveu, escreveu e gozou. Grande Eça. Saudadinhas.
 
adelino cp
16.8.23

O mundo dos outros...

adelino cpires, 15.08.23

Tenho pena de nunca ter tido aulas de literatura clássica. Se há coisas que faria hoje e que não fiz naquele tempo, essa era uma delas. Agora, nem com o Latim do Zero do Frederico Lourenço lá vou. Dele guardo a tradução da Odisseia da Cotovia, com uma dedicatória a alguém que estimava. E fico-me pela Hespéria, uma pequena Antologia de Cultura Greco-Latina. Folheio outros, invejo quem passou uma parte da vida a ler, estudar, sublinhar, ensinar, partilhar, enfim, a viver mergulhado num mundo que não é o meu.
 
Neste mundo dos outros vamos aprendendo que aquilo que sabemos é infinitamente pouco quando comparado com o saber de alguns. Que nunca se mostraram. Que poucos conheciam. A não ser aqueles para quem a sua vida fazia sentido. E que viviam num tempo, noutro tempo, onde o tempo se contava batendo o pé ao ritmo a que se ia lendo. Em voz alta. Para que os deuses ouvissem. E os homens respeitassem.
 
adelino cp
15.8.23

A ponte é uma miragem

adelino cpires, 14.08.23

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Olho para Carlos Moedas e, por vezes, faz-me lembrar o Braga de Macedo, com aquele ar de quem não partia um prato e, de repente, "não sobrava uma chávena na cozinha". Dizem-me que é muito à frente, que tem mundo e que é capaz do melhor, do bom, muito bom, salpicado do mau, muito mau. Não duvido que foge do cinzentismo a que estamos habituados. Gabo-lhe a ousadia de quando uns tendem a fugir ele tende a subir, espreitando em bicos dos pés. Não sei se sabe nadar. Mas não me admiraria vê-lo em mar alto atirar-se às ondas, glu, glu, glu, e mais ou menos pirolito desabafar: salvei-os a todos. Por vezes, lembra-me até o forcado da cara no meio da praça chamando pelo touro. Ele, com aquele corpanzil (tal como o meu), julgando-se capaz de pegar um Passanha ou um Grave sem pestanejar. 

 
Moedas pode ter muito para dar ao país, assim o país o perceba. E assim Moedas perceba o país. Mas tem coisas que não lembra ao Diabo, mesmo numa jornada católica. Se é certo que terá sido D. Manuel Clemente o pai da criança (salvo seja), nem ele terá pensado ser também o padrinho. A ponte é mesmo uma miragem. Moedas não partiu um prato, partiu a louça. Claro que haveria outras formas de agradecer a D. Clemente. E é claro que haveria outros padrinhos para a ponte. Desde logo a Juventude. Mas Moedas quis atirar-se ao mar alto. Ou pegar o touro de caras. Irá perceber agora que não tem corpinho para isso. Deu um tiro no pé. E isso dói. Ai, se dói...
 
adelino cp
14.8.23

Uma mesa, um tabuleiro... (escritos vadios)

adelino cpires, 13.08.23

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Não precisou de se aprumar no seu fato domingueiro, de se confessar antes da missa e nem sequer deu ouvidos ao que por aí se dizia. Nos últimos dias, bastaram-lhes os botões com que desabafava amiúde, que esses sim, mesmo que se fossem despregando, uma linha, uma agulha, um dedal e o par de óculos de ver por perto fariam com que voltassem ao sítio. Ah, se aquele casaco falasse. Sobre ele tantos os terços rezados que a conta já lhes perdeu. Sabia a cantilena de cor e mesmo que por vezes dormitasse entre um pai nosso e uma avé maria, retomava a ponta de uma meada acabada sempre em suspiro. Um suspiro e um chá de tília. E um pedacinho do tal bolo com uma pitada de segredo, que nunca o segredou a ninguém.
 
Agora, ali estava Etelvina, depois do dever cumprido, ela que durante anos e anos nunca abdicou de o fazer. A missa era sagrada. Era um conforto para alma, um ritual para o corpo, algo de que não prescindia. Mas aquele domingo era outro. Há muito que esperava por ele. Passava os dias na sala. Passava a sala pelos dias. Passava os anos por tudo. Nada mexia com ela. Nem mesmo as velhas memórias do fumegar do charuto a pareciam incomodar. Nem o fumo nem o ronronar do já defunto que antes de um dia se apagar, ele e o charuto também, um e outro inseparáveis, lhe oferecera uma pagela de nossa senhora das dores. Dele, guardou a pagela. E do gasto cadeirão, a lembrança da proeminente barriga, as duas mãos sobrepostas, os dois polegares a rolar, até um cabecear ondulante.
 
Santas tardes aquelas, naquele casarão forrado a registos, gravuras e livros, onde do elegante piano, restam as teclas desconchavadas. Ela ainda lhe deu algum uso, tinha algum jeito para o dó, mas foi sol de pouca dura. Ele bem tentava e insistia, mas entre a grossura dos dedos e a espessura de tanta tecla, sobrava sempre o charuto. Restaram as partituras, de folhas amarelecidas, capeadas a um carmim desgastado. Do resto pouco se sabe. Apenas que sobraram os livros. E de esguelha, no centro da sala, uma mesa, um tabuleiro. A jogada era de mestre. Lá fora um burburinho. Havia uns que exultavam. Nunca assim os havia visto, vestiam-se de aba larga. Havia outros que se exaltavam. Poucos, rubros, irados, pareciam ter perdido o norte. E havia os outros, ainda muitos. Estava na hora do terço. Olhou a mesa e o tabuleiro. Nunca entendeu aquele jogo onde se dava valor aos peões. E assim ficou Etelvina, ciente dos deveres cumpridos. Os de domingo a domingo. E os outros, de quando em vez.

 

(adelino cp - Quase Escrita / Jornal O Almonda, 3.Fev.22)